segunda-feira, 23 de março de 2009

Primeira carta de Malebranche a Mairan (sobre a filosofia de Espinosa)

Senhor,

[1] No momento encontro-me no campo, não tenho aqui o livro do qual me falais. Outrora li uma parte e rapidamente me desgostei não somente pelas conseqüências que são horrorosas, mas também pela falsidade das pretensas demonstrações do autor. Ele dá, por exemplo, uma definição de Deus que lhe poderíamos tomar em um sentido; mas acaba por empregá-la em um outro do qual conclui seu erro fundamental, ou antes, num sentido que contém esse erro; de modo que supõe aquilo que pretende provar. Considere a possibilidade, senhor, de reler as definições, etc., que ele cita nas suas demonstrações e descobrireis, se eu não me engano, o equívoco que faz com que não as prove. Para mim, bem longe de encontrar, ao ler seu livro, a claridade que busca toda demonstração, encontro grande obscuridade e muitos equívocos.
[2] A principal causa dos erros desse autor deriva-se, me parece do fato de que ele toma as idéias das criaturas pelas criaturas mesmas, as idéias dos corpos pelos corpos e supõe que os vemos neles mesmos: erro grosseiro como sabeis. Pois, estando convencido interiormente que a idéia da extensão é eterna, necessária, infinita, e, supondo, por outro lado, a criação como impossível, ele toma pelo mundo (ou extensão criada) o mundo que é objeto imediato do espírito. Assim, confunde Deus ou a soberana Razão, que contém as idéias que esclarecem nossos espíritos, com a obra que as idéias representam. Não poderei, aqui, me explicar mais longamente, pois não é possível sem que se perca muito tempo, e, eu quase não o tenho, minha mão treme. Filosofar por cartas, sobretudo no caso de matérias abstratas – mesmo em presença, ou em disputas, se leva muito tempo sem que se chegue a um entendimento. Embora não tenha escrito ex professo contra o autor, podereis encontrar alguns esclarecimentos acerca das vossas dificuldades nos Diálogos entre um filósofo cristão e um Chinês que escrevi há dois ou três anos, essa obra trata da natureza e da existência de Deus. Mas, com respeito ao autor, basta reconhecer que se seguem dos seus princípios uma infinidade de contradições e de sentimentos ímpios para que possamos nos defender de suas pretensas demonstrações, mesmo quando elas parecem convincentes. Pode ser que as tenhamos refutado mal; mas não se segue disso que ele tenha razão. Não li as refutações que têm sido feitas a esses erros, pois não tenho necessidade; dessa forma, não posso julgar. Fiz o que me ordenastes no fim de sua carta, com respeito,
Senhor,
Vosso mui humilde e mui obediente servidor.

Malebranche, P.D.L.O

29 de setembro.
(Trad. Cleiton Zóia Münchow)