sexta-feira, 2 de julho de 2010

Muitas respostas encontram-se em afirmações de Spinoza (Clarice Lispector)

Faz tempos que, ao conversar com amigos que estudam filosofia contemporânea, percebo ser Espinosa o solo no qual se move boa parte do pensamento filosófico contemporâneo. Essa percepção teve sua primeira confirmação quando fiz a leitura de Spinoza o Hegel, escrito por Macherey, neste livro o autor pretende mostrar o falseamento que a leitura de Hegel exerce em relação à filosofia de Espinosa: o alemão chega, inclusive, a traduzir incorretamente uma das passagens de uma carta de Espinosa, tudo isso para excomungar, mais uma vez, o excomungado. Macherey mostra que esse procedimento é adotado por Hegel por ser sua filosofia ultrapassada pela substância imanente, ponto de partida da filosofia espinosana, que se coloca no real como finitude que não é negação do infinito, mas afirmação do mesmo.

Entretanto, para uma pessoa que não tem quase informações acerca da filosofia contemporânea, me incluo dentre elas, mostrar que Hegel leu, tal qual um torturador que faz a vítima assumir crimes que não são seus, os textos espinosanos não esclarece o motivo de ser Espinosa a água do moinho de muitos contemporâneos. Isso se esclarece se soubermos, como fica claro pelo prólogo escrito por Hardt (Leer Macherey), que os filósofos contemporâneos, entre estes inclui-se Deleuze, queriam se livrar do hegelianismo vigente:

Deleuze anuncia,em 1969, que sua geração de filósofos franceses foi definida por um “generalizado anti-hegelianismo”. Ele acabara de terminar seu grande livro sobre Espinosa e, sem dúvidas, a alternativa –Hegel ou Espinosa- estava presente em sua cabeça. Deleuze é muito claro: um sim a Espinosa significa um não a Hegel. (Hardt. In: Macherey. Hegel o Spinoza. P.8-9)


Deleuze não será o único a criar conceitos a partir de e com Espinosa, outros mais farão o mesmo: Althusser e Toni Negri (A anomalia selvagem: poder e potência em Spinoza), são bons exemplos. Dentre as obras mais recentes que se apropriam de alguns conceitos de filosofia de Espinosa encontramos, mais uma vez, Negri, mas agora acompanhado por Hardt, que em seu Império, publicado em 2000, utiliza e faz uma releitura de conceitos originários da filosofia de Espinosa: multidão e imanência, constituem bom exemplo. Além disso, Negri em várias passagens do livro situa Espinosa como precursor de filosofias contemporâneas:


O anti-humanismo que foi projeto tão importante para Foucault e Althusser na década de 1960 pode ser vinculado efetivamente a uma batalha sustentada por Spinoza trezentos anos antes. Spinoza denuncia qualquer entendimento da humanidade como imperium in império. Em outras palavra, ele recusou conceder à natureza humana qualquer lei que fosse diferente das leis da natureza. Donna Haraway leva adiante o projeto de Spinoza em nossos dias quando insiste em derrubar as barreiras que impusemosentre o humano, o animal e a máquina. (Negri. 2000, p. 108)


A passagem acima, além de mostrar que o projeto contemporâneo é similar aquele de Espinosa, nos mostra que mesmo no pensamento pós-feminista há ecos da filosofia de Espinosa. Donna Haraway é uma pós-feminista, tomada por muitos como teórica Queer. Em seu Manifesto Ciborgue, de fato, Haraway apresenta um modo de pensar os ciborgues (figura que não tem fronteiras definidas entre animal, humano e máquina) muito próximo ao modo como Espinosa pensa a noção de modo, embora lá não apareça nenhuma referência explicita ao filósofo.

Na mesma linha teórica, a saber, Queer theory, uma das vozes contemporâneas assume, em uma nota de um de seus livros, trabalhar um de seus conceitos numa perspectiva que é a de Espinosa. Estou falando de Beatriz Preciado que, no seu Testo Yonque (publicado em 2008), quando começa a desenvolver o conceito nomeado de Potentia Gaudendi, nos diz o seguinte: Trabalho aqui a partir da noção de “potência de atuar ou força de existir” que, a partir da noção grega de dynamis e seus correlato metafísico escolástico, elaborara Espinosa . (Preciado. P.38).

Recomendo, para não ficarmos somente em terras estrangeiras, o primeiro Romance de Clarice Lispector: Perto do coração selvagem. Neste romance há várias passagens em que a autora cita Espinosa, sobretudo, a segunda parte da Ética. Não seria isso um bom indicio da influência do pensamento de Espinosa na obra de Clarice? Não lembro bem e não posso conferir, pois não possuo o livro, mas creio que, em O dorso do Tigre, Benedito Nunes, quando aborda a obra de Clarice, não faz referência a Espinosa, se limitando a falar dos estóicos e de Sartre.

Termino com uma passagem do livro de Clarice, passagem que tem o tom que eu pretendia dar à postagem, a saber, apontar para potencia contemporânea do pensamento espinosano. Entretanto, antes de passar ao texto de Clarice, preciso lembrar uma brasileira que se dedica ao estudo de Espinosa: Marilena Chaui. Basta estar atento ao seu Nervura do real para perceber não se tratar de mera obra historiográfica,;Marilena, ao interpretar os textos de Espinosa, o reinscreve no pensamento contemporâneo e se inscreve no mesmo junto com ele. Fiquemos com Clarice:


Não esquecer: “o amor intelectual de Deus” é o verdadeiro conhecimento e exclui qualquer misticismo ou adoração. – Muitas respostas encontram-se em afirmações de Spinoza. Na idéia por exemplo de que não pode haver pensamento sem extensão (modalidade de Deus) e vice-versa, não esta afirmada a mortalidade da alma? É claro: mortalidade como alma distinta e raciocinante, impossibilidade clara de forma pura dos anjos de S. Tomaz. Mortalidade em relação ao humano. Imortalidade pela transformação na natureza. –Dentro do mundo não há lugar para outras criações. Há apenas oportunidade de reintegrações e continuação. Tudo o que poderia existir já existe. Nada mais pode ser criado senão revelado. (Perto do Coração Selvagem. P.138-9)


Pergunta: Husserl leu Espinosa?