Nossa comunicação se insere no contexto daquelas que procuram traçar pontos de aproximação e/ou de afastamento da filosofia bergsoniana e outras filosofias. Propomos-nos a pensar Bérgson a partir de Espinosa e vice-versa. O que sugeriria por si só um título como: A pré-subjetividade em Bérgson e Espinosa. No entanto, esse título, antes de ser lido afirmativamente, deveria ser lido como interrogativa: A pré-subjetividade em Bérgson e Espinosa? Porque lê-lo como interrogativa? Não pelo simples fato de ser uma questão a qual deveremos responder ao longo do texto, mas sim pelo motivo de que há um conectivo "e" ligando os dois substantivos próprios. Portanto, antes de nos perguntarmos sobre a questão da pré-subjetividade, é preciso que nos perguntemos sobre as condições de possibilidade do "e" que liga Bérgson a Espinosa.
Esse "e" pressupõe duas possibilidades, com ele pode-se querer indicar: (a) que ambos os autores, cada um ao seu modo concebeu uma instância pré-subjetiva, a única ligação entre eles seria o fato de que ao conceberem esta instância, suas filosofias romperam com a noção de subjetividade inaugurada por Descartes, e, portanto, o que validaria o conectivo entre Bérgson e Espinosa seria o fato de que ambos se viram diante da filosofia cartesiana, ou (b) esse "e" pode significar que há uma relação entre os dois filósofos, que ultrapassa o simples fato de que ambos negam a subjetividade cartesiana, ou seja, há uma aposta de que o modo pelo qual se dá essa negação, essa crítica, possui algo em comum, se assim for poderíamos afirmar certa familiaridade, no sentido de pertencer à família, entre Bérgson e Espinosa.
A questão que colocamos, a qual tentamos agora justificar as condições de validade, nos foi sugerida por Prado Junior, que em seu Presença e Campo Transcendental, institui certa familiaridade entre os autores. Na conclusão do referido livro Prado Junior nos diz que é a própria recusa do cogito, como ponto de partida radical, que aparece, assim, como projeto de finalidade do pensamento à sua finidade [2] No parágrafo imediatamente seguinte o comentador afirma que há duas maneiras de negligenciar o cogito, a saber, regredindo a uma esfera mais primitiva, onde ainda não se estabeleceu a distinção entre sujeito e objeto. Mas é possível abandoná-lo por encontrar, acima dele, uma instância absoluta que o relativiza: tal é a maneira de Espinosa e de Malebranche. E completa: é a própria leitura de Bérgson que nos obriga a uma inversão de perspectiva e que nos conduz à segunda maneira de recusa do cogito [3].
Embora seja de suma importância uma justificativa da cópula que compõe o título, ainda mais no caso dos filósofos em questão – pois para um o verdadeiro conhecimento é o conhecimento do singular, enquanto o outro concebe a filosofia como se fosse o desenrolar, por meio da linguagem, de uma intuição – não a daremos aqui, afinal isto ultrapassaria o escopo de nosso trabalho. Portanto, para passarmos direto ao ponto, aceitaremos que há uma relação entre as filosofias de Bérgson e Espinosa, para não sermos totalmente arbitrários cabe lembrar que o primeiro afirma em A intuição filosófica que pôde durante vários anos consecutivos, trabalhar longamente Berkeley, depois Espinosa (...)[4]. Mesmo que tenhamos, de modo insuficiente, simplemente apontado os possíveis problemas desse tipo de aproximação, deixemo-los de lado e passemos à questão da pré-subjetividade.
Com a noção de pré-subjetividade pretendemos indicar que antes mesmo do sujeito que descobre sua existência, por meio da dúvida e junto com ela descobre-se como subjetividade, ou seja, como consciência individual isolada no interior de si, há um anterior que é condição de possibilidade do mesmo.
Certamente, Descartes não negava a existência de um Deus como condição e fundamento para existência do sujeito finito, a confirmação disso é ter ele recorrido na terceira meditação à prova ontológica. No entanto, mesmo que não negue tal existência fundadora e anterior à subjetividade, o percurso por meio do qual ele chega a essa idéia de Deus só é possível porque toma essa subjetividade como ponto de partida.
Mais grave do que tomar esse sujeito subjetivo como ponto de partida é fazer dele o critério de certeza e evidência. Ao fazer isso Descartes pensa efetuar a fundação do conhecimento em bases seguras porque transparentes. Esquece ele que sob a capa dessa transparência reside uma série de elementos. Não se trata aqui de procurar mostrar que o cogito, e essa é a acusação de Nietzsche, é uma espécie de silogismo incompleto[5], mas, sim, mostrar que esse sujeito puro na verdade só o é aparentemente. E sendo sua pureza somente aparente, tomá-lo como ponto de partida da reflexão filosófica é um equívoco.
Bérgson, no primeiro parágrafo da Evolução Criadora, afirma que “a existência da qual estamos mais certos e que melhor conhecemos é incontestavelmente a nossa (...)” [6] . Haveria aqui um acordo com o cartesianismo? Num primeiro momento, parece que poderíamos responder positivamente a esta questão, afinal o texto bergsoniano chega a reconstituir os passos cartesianos. Descoberta a indubitabilidade de nossa existência cabe efetuar o exame dos dados de nossa consciência. De fato, tanto Bérgson quanto Descartes fazem tal exame, mas contrariando o segundo, o exame efetuado pelo primeiro mostrará que a consciência do homem, e, portanto, a certeza de sua existência, junto com ela, tem uma história que a envolve e a ultrapassa.
Neste sentido, se podemos ter certeza de nossa existência e isso é incontestável - essa incontestabilidade da nossa existência carrega consigo a exigência de estar inserida no mundo - a própria descoberta do cogito, possível somente por um ato de inteligência, teria de levar em conta uma história, a história da própria inteligência “que foi amoldada pela evolução ao longo do trajeto”[7] .
Não há possibilidade para a existência de um sujeito abstrato, fechado em si. Esse sujeito se constitui a todo instante em algo que lhe contém. A subjetividade cartesiana esconderia, portanto, uma pré-subjetividade, ou seja, o seu possível. O eu cartesiano será visto como um produto, como um “eu amorfo, indiferente, imutável, sobre o qual pudessem desfilar ou no qual pudessem enfileirar-se os estados psicológicos (...) é uma imitação artificial da vida interior, um equivalente estático que se prestará melhor às exigências da lógica e da linguagem, justamente porque o tempo real terá sido eliminado dele”[8].
Todas estas considerações sobre o primeiro parágrafo da Evolução Criadora organizaram-se em torno de uma tentativa de mostrar que mesmo sendo nossa existência aquilo de que estamos incontestavelmente mais certos, isso não significa que há aqui parentesco com Descartes. Bento Prado Júnior se defronta com a mesma passagem, da qual agora nós tratamos de tecer considerações, a respeito dela o comentador nos diz que:
(...) não temos aí a determinação de um ponto de partida necessário do filosofar e, muito menos, a definição de uma evidência particular que constitua não somente a primeira verdade de uma cadeia de razões, mas também um critério de todo conhecimento, isto é, fundamento de um método universal. Temos, pelo contrário, um tipo peculiar de experiência que nos revela uma dentre as regiões do ser e que nada nos informa a respeito da arquitetura das demais regiões do real [9].
Prova disso é que não há dissociação entre a investigação filosófica e os critérios de verdade ou um método para conhecer as coisas a conhecer. Assim sendo, não seria justificável a busca de um fundamento, ou primeira certeza, que possibilitasse o desenvolvimento do pensamento filosófico. Há um deslocamento, em Bérgson a consciência não será o ponto de partida, aquilo que permitiria o desenvolvimento subseqüente da investigação filosófica, ela sequer é descoberta por meio de um método apartado do conhecimento.
A consciência, portanto, e junto com ela a certeza incontestável de nossa existência tem função muito distinta daquela que recebe na filosofia cartesiana. Isso fica claro não só pela economia do texto bergsoniano, que tal como Malebranche em suas Entretiens, nega todo processo da dúvida na descoberta do cogito. Em Bérgson, tal como em Malebranche, não há método apartado do conhecimento [10].
Essas considerações ganham luz se nos voltarmos para conferência sobre A consciência e a vida. Nesta conferência Bérgson abre algumas questões e fala sobre a possibilidade de responder a elas. Seria exigido, por uma filosofia sistemática, que antes de respondermos tais questões puséssemos as condições de possibilidade da própria questão, no sentido de efetuar uma investigação sobre como buscar as soluções. Por outras palavras, deveríamos tecer considerações tais como: porque temos tal e tal instrumento de conhecimento, deveremos buscar a resposta com tais e tais métodos. Assim, todo e qualquer tentativa de filosofar deveria levar em consideração as possibilidades do próprio conhecimento.
A posição de Bérgson é próxima da de Espinosa, ambos partem já para própria investigação sobre as coisas. Diz-nos o primeiro: “Só vejo um meio de saber onde ir: é colocar-se em marcha”[11]. Da mesma forma, Espinosa, no Tratado da Correção do Intelecto,afirma não ser necessário efetuar uma investigação sem fim:
para se descobrir qual o melhor método de investigar a verdade, não é necessário outro método para investigar qual o método de investigar a verdade; e para que se investigue este segundo método, não é necessário um terceiro, e assim ao infinito: por esse modo nunca se chegaria ao conhecimento da verdade, ou, antes, a conhecimento algum [12].
Para os dois, trata-se de mergulhar, antes mesmo de se tecerem considerações sobre as possibilidades do conhecimento, “no próprio objeto por um esforço de intuição”[13]. Talvez seja aí que mora o parentesco entre os dois filósofos. Essa impossibilidade de distinção entre método e filosofia – uma vez que é no processo de filosofar, nessa tentativa de se colocar no próprio objeto, que se dá a descoberta do modo pelo qual o conhecemos – é conseqüência da idéia de que as próprias formas de conhecer estão atreladas a um todo maior que lhe contém, de tal forma que a metafísica sempre deverá anteceder a própria investigação sobre as possibilidades do conhecimento, pois é no horizonte de uma ontologia que o próprio conhecimento - ou instrumentos de conhecimento – é formado.
O próprio ato de pôr em dúvida, de suspender o juízo para que cheguemos à verdade do cogito sempre carrega consigo um elemento impossível de ser descartado, a saber, a dúvida só pode ser posta porque já temos um critério do que vem a ser aquilo que não é duvidoso, há uma verdade dada. O poder pôr as coisas em dúvida nos remete sempre a uma anterioridade, a um pré-conhecimento. A dúvida não é vazia e, portanto, o cogito, que por meio dela descobrimos, sempre esteve presente com todos os elementos que lhes são constitutivos. Não há passagem de um não saber absoluto para o saber, não há subjetividade absoluta que busca se lançar para fora de si na busca de uma objetividade, de um mundo real que possa ser conhecido com clareza e evidência. O que há sempre é um sujeito inserido no mundo.
As filosofias de Espinosa e Bérgson constituem um campo de imanência, é sempre neste campo, que nos atravessa e nos ultrapassa, que constituímos nossa liberdade. Nele não há um fora nem um dentro, mas plenitude de ser. Da mesma forma como Joseph K., em O Processo de Kafaka, que busca descobrir-se no interior de um mundo constituído e que ele também constitui, o homem nas filosofias de Bérgson e Espinosa é também um ser-no-mundo. E por assim o ser, não consegue nunca se apartar deste, não há como pensar fora do mundo.
Não há mais espaço para esse eu puro, espécie de núcleo duro, para esse sujeito que permanece idêntico na diversidade de seus atos. O que há é um sujeito que se relaciona com o mundo, descobre-se nesse, o afeta e é afetado por ele. Em Espinosa isto fica claro se voltarmos nossa atenção para duas de suas obras, uma delas já referida aqui, o Tratado da Correção do Intelecto[14], no qual temos como ponto de partida do discurso o homem inserido no mundo procurando selecionar seus afetos para tentar encontrar o Bem Supremo. Na Ética temos Deus como o ponto de partida do filosofar, somente no segundo livro da mesma é que teremos considerações sobre como conhecemos as coisas, isso por um motivo muito simples, a saber, tal compreensão só pode se dar depois que soubermos que lugar o homem ocupa na natureza.
Mesmo a consciência, consciência de si, ponto de partida da filosofia cartesiana, encontra em Espinosa sua derivação. Ela não é um conceito primitivo, mas derivado. Se nos voltarmos para o Apêndice ao primeiro livro da Ética, veremos que a ignorância dessa derivação causa muitas ilusões. A consciência que ignora o que a antecede, que ignora ser efeito e não causa, pensa ser dotada da capacidade absoluta de decidir, em outros termos, acredita ser detentora de livre arbítrio.
Espinosa apresenta duas teses que ilustram o motivo pelo qual são engendradas as idéias imaginativas, a saber, (a) todos os homens nascem ignorantes acerca das causas das coisas, e (b) todos desejam alcançar o que lhes é útil e disso têm consciência. Ser ignorante das causas das coisas e consciente dos desejos é o motivo pelo qual a idéia de livre arbítrio, entre outras, é engendrada. Quando agimos com base na consciência das volições e desejos que temos, ignorando que estas são efeitos de causas que nos “dispõem a apetecer e a querer”[15], agimos tal qual a pedra que recebe o movimento de uma causa externa, e a continuação do movimento depende sempre dessa causa externa:
Concebes agora, se quiseres, que a pedra, enquanto continua a mover-se, saiba e pense que se esforça tanto quanto pode para continuar a mover-se. Seguramente essa pedra, visto que não é consciente senão de seu esforço, e não é indiferente, acreditará ser livre e que persevera no movimento apenas porque quer. É esta a tal liberdade humana que todos se jactam de possuir e que consiste apenas em que os homens são conscientes de seus apetites, mas ignorantes das causas que os determinam. É assim que uma criança crê desejar livremente o leite, um menino vingar-se, se irritado, mas fugir, se amedrontado. Um ébrio crê dizer por uma livre decisão aquilo que, sóbrio, desejaria ter calado. Da mesma maneira, um delirantes, um tagarela e muitos de mesma farinha acreditam agir por um livre decisão de sua mente e não levados por impulsos [16].
O exemplo acima ilustra bem a razão pela qual a consciência não pode ser o ponto de partida da reflexão filosófica. Objetar-se-á que se assim o é, porque no TIE Espinosa parte da perspectiva do homem que está envolvido em uma série de causas que entravam o processo na busca do Bem Supremo? Não seria isso a prova de que a filosofia poderia partir do ponto de vista da consciência? É certo que no TIE o ponto de partida são os dados da consciência do homem inserido no mundo e que há um aprofundamento da mesma, uma reflexão sobre esses dados com vistas a atingir o Bem Supremo e a idéia de um Ser perfeitíssimo. No entanto, não podemos esquecer que Espinosa não considera esse texto como sendo a sua filosofia, esta se encontra na Ética e lá o ponto de partida é já a idéia desse Ser perfeitíssimo causa de todas as coisas.
Portanto, nunca há essa interioridade na qual o sujeito seria senhor de seus estados, pelo contrário, ele é invadido, tomado pelos afecções e pensa que tem livre arbítrio, porque ignora a causa de suas determinações, mas tem consciência das afecções. Mesmo o processo da dúvida, essencial para que se chegue, na filosofia cartesiana, a certeza do cogito é recusado por Espinosa, porque há uma idéia verdadeira dada, cabendo ao verdadeiro método efetuar uma reflexão sobre tal idéia.
Não pensemos, entretanto, que há total recusa da consciência na filosofia de Espinosa, o que ele recusa é simplesmente tomar a consciência como conceito primitivo que possibilite fundar a filosofia. Prova de que não total recusa é que no final da Ética quando estabelece uma distinção entre o sábio e o ignorante, essa distinção reside no tipo de consciência que cada um deles possui:
O ignorante, com efeito, além de ser agitado de muitas maneiras pelas causas exteriores e de nunca gozar do verdadeiro contentamento íntimo, vive, ainda, quase sem consciência de si mesmo, de Deus, das coisas e ao mesmo tempo que ele deixa de sofrer, deixa também de ser. Enquanto que, pelo contrário, o sábio, na medida que se considera como tal, dificilmente se perturba interiormente, mas, consciente de si mesmo, de Deus e das coisas, em virtude de uma certa necessidade eterna, nunca deixa de ser, mas goza sempre do verdadeiro contentamento interior [17].
A consciência do sábio leva em conta não só a si mesma, mas é também consciência de Deus e das coisas. Só esse tipo de consciência sabe pensar a partir do lugar que ocupa. Da mesma maneira que em Espinosa em Bérgson a consciência remete a uma anterioridade, essa anterioridade a que nos remete a consciência individual é a Consciência em Geral. Nos dirá Silvestre que na filosofia bergsoniana não temos uma visão “psicologizante do real, desprovida de pressupostos metafísicos, onde a realidade toma a forma do objeto psicológico, como se fosse sua simples e pura ampliação ...” na filosofia de Bérgson, segundo o comentador, se dá o contrário disso, “rata-se de uma filosofia onde o tempo psicológico e a consciência individual se apresentam como um caso específico do Tempo Ontológico e da Consciência em geral, respectivamente” [18].
Obviamente que as aproximações entre Bérgson e Espinosa têm seus limites. Nossa intenção nessa breve exposição era simplesmente a de apontar para o fato de que há certa relação entre ambos, relação esta que pode ser pensada a partir da crítica ao conceito de consciência. Obviamente o alvo da filosofia de Bérgson, ao contrário de Espinosa, muito mais do que Descartes e sua concepção de consciência, era a psicofisiologia, ou aquilo que Merleau-Ponty, mais tarde, chamará de pequeno racionalismo. No entanto, esse pequeno racionalismo, como é apontado por Merleau-Ponty, esquece que carrega consigo pressupostos metafísicos e justamente por isso é pequeno e não grande racionalismo. Muitos dos pressupostos que esse pequeno racionalismo comporta provém, sem que o saiba, do Grande racionalismo. O que queremos dizer é que no limite, a psicofisiologia do XIX é caudatária da distinção entre corpo e alma efeutada por Descartes no XVII, portanto, o alvo de Bérgson acaba sendo o mesmo de Espinosa, a saber, Descartes. Bérgson na conferência sobre A alma e o corpo afirma que:
De fato, através de todo século XVIII podemos seguir os traços desta simplificação progressiva da metafísica cartesiana. Na medida em que ele se estreita, mais se infiltra numa fisiologia que, naturalmente, encontra nela uma fisiologia muito apropriada para dar a confiança em si própria que ela necessita. É assim que filósofos (...), cujas ligações com o cartesianismo são bem conhecidas, trouxeram para a ciência do XIX o que ela poderia melhor utilizar da metafísica do século XVII [19].
O cientista, continua Bérgson, que pensa fazer ciência e comprovar as teses do paralelismo por meio da experiência pensando que esta nos revelaria “um paralelismo rigoroso e completo da vida cerebral e vida mental”, deve ser lembrado de que não está fazendo ciência, mas metafísica.
Não podemos esquecer, no entanto, que se, por um lado, Bérgson efetua está crítica à ciência do XIX - o que nos permitiu mostrar que há uma discussão com Descartes - ; por outro lado, nesse mesmo texto, Bérgson, é muito mais amistoso para com Descartes do que para com Espinosa, isso se deve ao fato de que o primeiro preferia, segundo Bérgson, “a despeito do rigor da doutrina, deixar algum lugar para vontade livre”, esse espaço para vontade livre desapareceu na filosofia de Espinosa, a vontade livre foi “varrida pela lógica do sistema” [20]. Espinosa, juntamente com Leibniz, abriu espaço para instauração de um “paralelismo constante entre estados do corpo e os da alma”[21].
Agora podemos retomar as perguntas que fizemos no início de nosso trabalho sobre o parentesco entre Bérgson e Espinosa. O parentesco parece residir simplesmente na negação de uma consciência individual entendida como conceito primitivo da filosofia. Limite preciso, estabelecido pela acusação de que Espinosa e Leibniz “preparam o caminho para um cartesianismo diminuído”; talvez devêssemos inverter agora, negando o que havíamos dito antes, não é Descartes com quem Bérgson está discutindo, mas com os responsáveis pela formulação desse cartesianismo diminuído, afinal, estes que foram responsáveis pelo início da “simplificação progressiva do cartesianismo”[22].
Todo trabalho de comparação entre os autores em questão deveria antes passar pelo estabelecimento do modo pelo qual Bérgson leu Espinosa e, talvez sem o saber, ele seja mais espinosano do que pensa. É certo que não há em Espinosa liberdade da vontade, mas há liberdade, liberdade esta que se dá a partir de uma relação contínua do infinito ao finito. É certo que Espinosa estabelece na proposição 7 do segundo livro da Ética que a ordem e a conexão das idéias é a mesma que a ordem e a conexão das coisas, mas não é certo que isso seja de fato um paralelismo.
Uma leitura de Espinosa, sem os vícios gerados pelo rótulo “filosofias da representação”, talvez revele o significado profundo daquela passagem, conhecida entre os estudiosos de Espinosa, na qual Bérgson afirma que todo filósofo tem duas filosofias, a sua e a de Espinosa. Marilena Chaui, referindo-se a esta afirmação de Bérgson, nos diz que com ela o filósofo pretende significar que “o espinosismo é a tendência natural da inteligência a fixar-se na imobilidade do Ser, e a petrificar-se no utilitarismo instrumental que precisa ser contrariado pela mobilidade criadora do elã vital e da intuição” [23]. Como sabemos, pela própria interpretação da comentadora em questão, Espinosa não é Eleata, e, portanto, não há imobilidade do ser : intuição em Espinosa capta o objeto em sua geração e movimento. Talvez Bérgson seja mais espinosano do que pensa ser e o afastamento que Bérgson crê possuir em relação a ele deve ser buscado no modo como leu este último.
BIBLIOGRAFIA
BERGSON, H. A Evolução Criadora; Ed. Matins Fontes, São Paulo, 2005.
____________. A intuição filosófica; Col. Os Pensadores. Ed. Abril Cultural,
São Paulo, 1979.
____________. A Consciência e a Vida; Col. Os Pensadores. Ed. Abril Cultural,
São Paulo, 1979.
____________. A Alma e o Corpo; Col. Os Pensadores. Ed. Abril Cultural,
São Paulo, 1979.
CHAUI, M. A Nervura do Real: Imanência e Liberdade em Espinosa;
Companhia das letras, São Paulo, 1999.
ESPINOSA, B. Ética; Col. Os Pensadores, Ed. Nova cultural, São Paulo, 2000.
____________. Tratado da Correção do Intelecto; Col. Os Pensadores, Ed. Nova
Cultural, São Paulo, 2000
____________. Correspondência; Col. Os Pensadores, Ed. Nova Cultural, São
Paulo, 2000
ONATE, Alberto M. Nietzsche/Descartes: o cogito em questão. In Dissertatio,
nº 9, 1999
* Texto apresentado no Cólquio Internacional Henri Bergson, 2007, Rio de Janeiro. 100 anos da Evolução Criadora. Rio de Janeiro, 2007.